O Barril Parte 1
Enquanto todos na festa questionavam entre si a recuperação mental de Fernando, ele observava a chuva fina pela janela do saguão de festa da mansão onde morava. Ele sabia o que as pessoas diziam, mas não se importava, pois ele mesmo questionava sua sanidade e ainda duvidava que pudesse ter uma vida normal. Depois da morte da mãe e namorada em um acidente de carro causado por sua embriagues, a culpa o levou a loucura e ao atentado à própria morte. Foi internado em um hospício recomendado pelo médico da família e o pai com medo de perder o filho aceitou.
Fernando ficou internado por três anos. Pelos relatórios dos médicos estava curado e o liberaram. Ele foi contra e quis ficar, disse ter pesadelos terríveis e temia uma recaída, mas o pai insistiu e ele foi para casa. O contato direto com a morte, primeiro perdendo duas pessoas amadas e depois com a tentativa de suicídio o deixou sensitivo.
“Ei, o que você esta fazendo? Você não pode ficar isolado na sua festa de boas vindas. As pessoas que estão aqui te amam e querem te ver felizes, muitos você não vê há muito tempo, vamos lá.” – Disse o pai abraçando-o.
“Tudo bem, mas estou um pouco cansado, em algum tempo vou me deitar.”
“Parece-me uma boa idéia filho, mandei arrumar se quarto do jeito que você gosta e vai te fazer bem dormir em um ambiente alegre, bem diferente do hospital.”
Os dois saíram abraçados em direção aos convidados que os receberam com alegria. Fernando conversou com amigos e parentes relembrando momentos de felicidade do passado. O ambiente era de festa e alegria, parecia que todos haviam esquecido as tragédias ocorridas com o pobre rapaz.
Fernando subiu para seu quarto e olhou com grande surpresa a beleza da decoração que seu pai mandara fazer. A parede pintada de verde que era sua cor favorita, pequenas esculturas de animais selvagens que era sua paixão e pela qual passava horas lendo e estudando. Uma cama de casal e uma televisão gigantesca se destacavam pela beleza.
Deitou-se na cama pensando na festa, há muito tempo não se sentia tão feliz. Talvez os médicos estivessem certos e ele realmente poderia viver uma vida normal fora do hospício e algum tempo depois adormeceu fazendo planos para o futuro.
Fernando despertou-se com o ar gelado tocando nele. Abriu os olhos e estremeceu, estava de volta no hospício. Perguntas sem respostas giravam em sua cabeça. Acabou por decidir que sua liberação, a festa e seu quarto não passavam de um sonho provocado pelo desequilíbrio mental e chorou virado para a parede.
Um grito vindo do lado de fora lhe chamou a atenção e olhando em volta percebeu que algo estava estranho. Algo não estava coerente com a realidade. Tentou abrir a porta do quarto, mas esta estava trancada, então começou a bater. Em alguns instantes a pequena janela na porta de metal se abriu.
“Fernando, que bom te ver.” – disse o homem do lado de fora.
“Diego, te internaram de novo? Você foi liberado há tantos meses.”
“Você sabe, uma vez aqui, agente nunca mais sai.”
“Deixe-me sair.”<
“Claro vamos dar uma volta pelo pátio.”
Diego era o único amigo de Fernando no hospício, apesar da diferença de idade entre eles os dois se davam muito bem. Havia sido internado depois do desaparecimento da esposa que supostamente havia fugido com boa parte de sua fortuna. Ele era um grande produtor de cachaça e sua esposa cuidava das finanças do negócio até que ela desapareceu com o dinheiro quase levando Diego a falência.
A porta do quarto de se abriu. Diego sorriu momentaneamente, mas agora seu rosto expressava dor. Por de trás dele apareceu uma mulher e lhe agarrou pelos cabelos. Ele tentava respirar, mas não podia, a dor era insuportável e sangue saia por sua boca.
Fernando pôde ver a ponta de metal saindo pelo peito do amigo. Olhava tudo com terror e tentou se afastar, mas foi impedido pelas paredes do quarto. Não tinha para onde ir e estava com medo. A mulher misteriosa que assassinara seu amigo o deixou cair no chão. Seu rosto voltado para Fernando ainda expressava dor, mas pelos olhos ele notou que não havia vida em seu amigo e ele gritou aterrorizado. Ela por sua vez andava lentamente em direção a sua nova presa que continuava gritando com os olhos fechados, pois não podia suportar a situação de terror. Ele sentiu mãos segurando-lhe os braços e escutou uma voz conhecida, era seu pai.
“Acorda você esta tendo um pesadelo.” – disse seu pai enquanto sacudia seu corpo.
Ele abriu os olhos e uma vez mais estava em seu quarto. Seu pai o abraçava e o confortava tentando aliviar o desespero do filho.
“Conte-me o que aconteceu.”
“Nada pai, somente um pesadelo. Sonhei que uma mulher esfaqueava Diego e depois tentou me matar também. Tem meses que não nos vemos ou falamos, vou ligar para ele amanhã.”
“Esta bem, agora volte a dormir e toma esse remédio. O médico disse para tomar se os pesadelos voltarem.”
Na manhã seguinte ele foi buscar o telefone do amigo para checar se estava tudo bem. As noticias não foram agradáveis. Diego havia se matado há quatro dias e havia sido enterrado em sua cidade natal.
Enquanto desligava o telefone a governanta da casa o chamou.
“Tem uma entrega pra você lá fora, e pelo visto é uma coisa grande.”
Os dois foram para fora, o motorista do caminhão de entregas esperava por eles. Abrindo a porta traseira ele mostrou o que viera entregar. Era um barril gigante de cachaça, tinha mais ou menos três metros de altura e outros quatro de comprimento.
“Vai ter muito pra beber ai doutor. Onde querem essa belezoca?”
“Você tem o nome do remetente?”
O homem entregou uma prancheta para Fernando e pediu que assinasse o recibo. Fernando gelou, pois achou muito estranho. O barril foi enviado por Diego no dia em que ele se matou. Por fim pediu ao motorista que colocasse no saguão de festas que com ajuda de uma máquina não se demorou.
Apesar de não beber bebidas alcoólicas por causa dos remédios ele apreciou o presente do amigo. Seu pai dava muitas festas e com certeza os convidados iriam gostar da bebida, pois ele sabia que era de qualidade.
Desde a chegada do barril coisas estranhas se passavam na casa que até então era bem calma. Luzes acendendo sozinhas, portas trancando pessoas dentro de quartos e o mais terrível, uma empregada contou que havia visto um fantasma caminhando pela casa. Os empregados da casa até diziam entre si que Fernando era o culpado dos fenômenos e além de louco estava possuído. Ele por sua vez estava cada dia pior. Dormia escutando musica alta e evitava conversar com as pessoas. A depressão, angustia e um sentimento de peso no corpo o deixavam mal humorado e triste. A vontade de suicídio uma vez mais retornou e a cada dia ele lutava para não concretizar o atentado. O pesadelo que tivera retornava diariamente.
Certa noite Fernando estava deitado em sua cama relembrando do hospício quando sentiu um calafrio e escutou um suspiro vindo da porta de seu quarto. O terror tomou conta de sua mente, mas ele não conseguiu gritar, sua voz estava presa na garganta e ele estava sufocando. A mulher de seus pesadelos estava ali com ele. Sua aparência não era nada agradável. Seus cabelos negros e pele pálida estavam molhados. Ela estava vomitando e sufocando com o próprio vomito enquanto andava em direção a Fernando que sentiu algo lhe tocar os pés. O terror aumentou mais, pois duas mãos agarraram seus pés, o rosto da pessoa estava disforme, mas ele pode ver que era um homem e também vomitava. Os dois se aproximavam de Fernando lentamente, a expressão em seus rostos era ao mesmo tempo de ódio e suplica.
“O que vocês querem?”
“Ajuda...Aju.” – disse o homem enquanto se sufocava com o próprio vomito.
Em milésimos de segundos a cena desapareceu e Fernando estava só em seu quarto uma vez mais. Seu corpo tremia e notou que tinha urinado. Começou a chorar, pois pensava ter caído na loucura uma vez mais. Alguém tocou na porta e entrou, era seu pai, tinha escutado seu choro e foi ver o que era. Fernando lhe contou a história e seu pai escutou tudo calado.
“Nossa filho, isso ta parecendo mais uma história de terror. Espero que você não esteja assistindo filmes assustadores, o médico disse que não é bom.”
“Pai eu estou bem, tomo meus remédios todos os dias e nem gosto de filmes ou histórias de terror, minha mente não esta fantasiando.”
“Não pensa que esteja vendo fantasmas não é?”
“Não sei, parecem muito reais. Eu já tive centenas de alucinações, mas essas são diferentes. E tem outra coisa, aquele barril no saguão de festas, algo me intriga. Comecei a ter esses pesadelos desde que ele chegou.”
“Coincidência filho, o barril chegou um dia depois de você. De qualquer maneira em alguns dias ele vai estar vazio e eu mando jogar ele fora. Em todas as festas ou reuniões os convidados adoram a bebida e ele já esta pela metade. Na próxima semana eu vou dar aquela festa anual da empresa, tenho certeza que a bebida vai acabar. Tira essas coisas da sua cabeça, amanhã cedo vamos ver seu médico.”
Na manhã seguinte os dois foram ao médico que receitou alguns medicamentos extras, mas não quis voltar a internar Fernando. Disse ainda que pelos resultados dos exames Fernando se encontrava em ótima condições mentais e que as alucinações eram inexplicáveis por isso optou em dar-lhe mais remédios.
Chegou o dia da festa anual da empresa de seu pai e Fernando estava animado com o movimento da casa, pois os empregados estavam ocupados com os preparativos. Já eram cinco da tarde e ele estava observando as pessoas indo e vindo do salão carregando bebidas e comida. Sentiu um cansaço repentino e decidiu ir descansar um pouco antes da festa.
“Você vai participar da festa filho?” – perguntou seu pai se aproximando.
“Claro, quero conhecer seus empregados. Depois de tanto tempo muitos devem ter mudado.”
“É verdade, a maioria não te conhecem.”
“Eu vou ir deitar um pouco antes da festa estou me sentindo muito cansado. Eu sei que a festa esta marcada para as sete da noite, mas comecem sem mim, vou descer ali pelas nove.”
“Não tem problema.”
Fernando foi para seu quarto, deitou-se e dormiu imediatamente após sua cabeça tocar o travesseiro, sentiu um frio repentino e cobriu-se inconscientemente. Não pode ver os dois fantasmas olhando para ele enquanto dormia. Um de cada lado da cama o observando seriamente.
“Isso já foi longe demais, hoje serei clara e direta e ele vai ter que fazer o que agente quer.” – Disse a mulher olhando seu parceiro que somente respondeu balançando a cabeça em sinal positivo.
Horas depois Fernando acordou com alguém gritando seu nome. O quarto estava escuro, iluminado apenas com a luz fraca passando pela cortina que cobria a janela. Tateou o criado mudo ao lado de sua cama até tocar a porcelana fria de seu abajur e enfim o botão para acendê-lo. Ainda um pouco sonolento olhou para o outro lado da cama de onde veio o grito. Ele gritou intensamente ao ver que em seu quarto estava o barril e seu amigo Diego sentado em cima dele.
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